O Menino que mastigava Nuvens [Artigo]
O Menino
que mastigava Nuvens
O som da buzina atentava a euforia das crianças da minha rua. Todo sábado era assim. Sempre na parte da tarde, por volta das 15 ou 16 horas. Aquele barulho ensurdecedor da buzina era como um murro dentro dos meus ouvidos. Mas, a perturbação estava para além da minha hipersensibilidade sensorial. Era algo a mais. Talvez um “lembrete” da impedição. O homem que vendia algodão doce passava na minha rua anunciando que estava por perto. Assim que o barulho da buzina começava podia-se ver os meninos e meninas da minha vizinhança correndo para os portões das suas casas a espera do homem do algodão doce. Eu observava tímido aquelas mães e pais comprarem algodão doce para seus filhos. As crianças rodeavam aquele homem grande e sorridente. De voz rouca e aveludada, o homem sorria e conversava com todos à sua volta, distribuindo sorrisos e alegria naquele sábado cor de creme. Eu esperava as crianças se dispersarem para eu me aproximar do vendedor. Eu queria fazer perguntas sobre o dito doce. Eu tinha uns 07 (sete) ou 08 (oito) anos de idade e ainda não conhecia o sabor e nem a textura daquela guloseima. Me aproximava e iniciava meu questionário. – “Quanto custa o algodão doce?” ele me respondia e eu já mandava outra: - “Qual dia o senhor volta?” Ele – “Sempre aos sábados.” E foi assim por umas cinco ou seis vezes; eu esperava um momento que o homem do algodão doce estivesse só para pergunta-lo as mesmas coisas. Certa vez, ele me disse: - “Peça sua mãe para comprar um para você!” Respondi: - “Minha Mãe não tem dinheiro. Ela trabalha em casa e cuida da gente, mas não ganha salário para isso.” Ele devolveu: - “Então peça seu pai.” Eu disse: - “Meu Pai está trabalhando.” Ele argumentou: - “Mas, hoje é sábado e seu pai trabalha na prefeitura, certo?!” Respondi: - “Sim. Meu Pai trabalha na prefeitura, mas aos sábados ele trabalha na casa de outras pessoas.” Meu Pai era um excelente Pedreiro e aos finais de semana realizava trabalhos de forma autônoma para complementar a renda da nossa Família. Ele, também, foi um ótimo eletricista e bombeiro hidráulico. Daí, sempre tinha muito serviço para ele fazer quando não estava no seu horário de trabalho na prefeitura, lá ele atuava como Encarregado/Mestre de Obras.
A ultima vez que vi o homem do
algodão doce ele tinha vendido praticamente todos os doces que trazia, sempre
enfincados em uma tora de madeira clara que ele carregava sobre os ombros. Havia
uns três ou quatro algodões doces com ele. Eram todos brancos. Os coloridos já
haviam sido vendidos. Ele estava com o semblante sereno, parecia feliz por ter
vendido tanto. Mais uma vez, me aproximei e antes de iniciar as mesmas
perguntas ele me perguntou: - “Qual o seu nome, menino?”
- “Me chamo Ernane.”
- “Vou te dar um algodão doce
de presente.” Ele tirou um algodão doce e me entregou. Olhei para o doce e
perguntei:
- “Do que ele é feito?”
- “De nuvem.” Respondeu
sorrindo.
- “As nuvens são doces?”
- “Não muito. Eu tenho que
colocar mais açúcar nelas, até ficar no ponto certo.”
- “Mas, como você consegue
pegar as nuvens?” Olhei para ele e percebi o quão alto ele era. Um homem bem
grande e preto. Deveria ter uns dois metros de altura. Ele deu uma gargalhada e
respondeu:
- “Você vê aquelas colinas ali
no alto?!” Apontando para um eucaliptal que ficava na frente da minha rua, mas,
não era perto, contudo dava-se para se avistar de longe. Acenei que sim e ele
completou:
- “Eu subo lá onde as nuvens
ficam mais próximas e vou pegando punhado em punhado e vou guardando nos sacos
de plástico e em casa eu adiciono açúcar.”
Ainda não convencido com
aquela história indaguei:
- “E os algodões doces que são
coloridos? As nuvens são todas brancas!” Ele olhou para mim sorrindo, voltou
seus olhos grandes para o céu, coçou o queixo – por um instante, pensei que ele
não diria nada – e sorrindo ele disse:
- “Os algodões doces coloridos
são possíveis somente em dias de chuva e sol.”
- “Porque?” Perguntei rapidamente.
E ele respondeu:
- “Quando chove e faz sol na
sequência surgem os arco-íris. E quando os arco-íris cortam o céu eles colorem
as nuvens...”
Eu não acreditei naquela
explicação. Mas, não quis questionar mais. Eu percebi que ele queria, na
verdade, era me encantar. Mesmo tão menino, tive esse raciocínio. Porque questionar
aquela explicação lúdica? Não acreditei na história, mas, acreditei no
encantamento! Ele queria me encantar, me mostrar que há beleza nas coisas. E porque
estragar isso? Demonstrei ter gostado da explicação e gradeci o presente. Ele seguiu
sorrindo e foi embora. Fiquei mastigando aquele algodão doce como se estivesse
mastigando nuvens...
Mais tarde conheci a maquina
de fazer algodão doce e até hoje aquilo me fascina. Mesmo hoje, já adulto,
quando estou em algum parque e vejo a máquina de fazer algodão doce fico parado
olhando tudo aquilo girar e girar e transformar açúcar em magia. Vejo algo tão
mágico no ato de comer, ver algodão doce. O homem é capaz de fazer de algo
simples algo tão poético. Deveríamos fazer isso a todo tempo. Transformar o
simples em algo extraordinário! E algodão doce é poesia comestível. Leve, doce,
macio e mágico. Remete à infância, à beleza, leveza, magia e encantamento...
Aquele sábado, lá trás na minha
infância, quando fui presenteado com o algodão doce feito de nuvens, talvez
tenha sido o meu primeiro exercício de empatia. Exercício, porque para mim é um
exercício diário. Não sinto empatia. Tenho alguns exercícios/métodos próprios para
exercitar esse sentimento, um deles é mentalizar pessoas próximas em situações alheias.
Por exemplo; quando acontece algo com alguém distante a mim, a forma mais efetiva
de eu exercitar empatia é; na minha imaginação colocar alguém próximo a mim e
que tenha características físicas próximas da outra pessoa para eu vislumbrar
algo que poderia afetar alguém importante para mim. Aí a empatia acontece. É como
se eu trocasse as personagens mentalmente nas situações para eu sentir empatia.
Mas, o mais importante é o facto de eu realmente me importar com as pessoas. Todavia,
quando fingi acreditar naquela história lúdica do Senhor dos algodões doces, de
certo modo foi uma ação de empatia minha. Sei que realmente eu me importei. Me importei
com ele. Quis deixá-lo acreditar que ele me encantara naquele momento. Foi uma
maneira de agradecer a ele pelo presente e pelo tempo, pela preocupação em me
encantar. Ele merecia que eu “entrasse” naquele faz de conta... Eu me
importei com ele porque ele se importou comigo também.
Há pouco tempo o mundo todo testemunhou
um homem ser morto “ao vivo” por um policial estadunidense. E ninguém fez nada
em facto para impedir aquela ação covarde, exceto filmar/registrar. Diante de
tanta barbárie que assisto na televisão, porque o caso do George Floyd me
chamara tanta atenção? Me perguntei durante muitos dias, porque o rosto dele me
chamava mais a atenção do que a imagem tão forte e brutal do ato em si? A resposta
veio de minhas memórias! O rosto do Floyd era muito parecido com o rosto do
homem do algodão doce. E era essa semelhança física entre eles que me
incomodava tanto. E o timbre de voz daquele norte-americano sendo morto na rua
aos olhos do mundo inteiro, suplicando por “ar”, também remetia a voz daquele
nobre homem – que eu nunca soube o nome – lá trás da minha tenra infância. Acredito
que as pessoas em sua maioria são boas. Em sua essência todos são bondosos,
porém, há instintos primitivos que deveriam nunca serem cultivados por muitos. Percebo
mais coerência entre os animais do que em muitos seres humanos. O meu espaço
termina quando começa o do outro e devemos ter essa noção de espaço. Penso que deveríamos
mastigar mais nuvens e cuspir mais poesia!
Ernane Alves