CRIATIVAmente [Artigo]

A desconstrução das “coisas” e o que é “socialmente apropriado”.

Sempre vi o mundo de cabeça para baixo, ou quase isso. Tudo de ponta cabeça. A ideia de desconstruir as “coisas” é algo que me atrai muito! Desde muito menino, com pequenas ações como; encontrar outras funções para os meus brinquedos até a criação de atividades que estavam para além daquela realidade formal e cheia de regras. O dito politicamente correto ou “apropriado”.

Lembro-me de uma Tia me corrigindo de como eu deveria brincar com um carrinho (brinquedo de plástico). Eu me entusiasmava ainda mais com as suas rodinhas do que em fazer ele (o carrinho) andar/rodar. Preferia ficar girando as rodinhas com o dedo. Era comum eu enfileirar todos os meus – poucos – carrinhos e eu tendia em não brincar tanto com eles. Gostava de aprecia-los encarreirados. Sempre tive um forte desejo por colecionar objetos. E os coleciono até hoje, já adulto, mas, agora são, em suma, livros, discos, obras de arte, roupas. Roupas eu acho que é uma questão até inconsciente/consciente. Quando adolescente eu tinha poucas roupas, especialmente, roupas para sair. Até hoje meus Irmãos riem ao se lembrar que eu ia aos aniversários dos meus primos com a mesma blusa de frio, no caso os aniversários que eram durante o inverno. Há várias fotos minhas em diversos aniversários diferentes e eu com a mesma blusa de frio e isso ao longo de uns cinco anos consecutivos. Ante ao bullying juvenil, foi um tanto chato para mim ver meus primos e amigos com roupas de frio bonitas e eu sempre repetindo a única que eu tinha. Talvez, por isso, atualmente eu tenha tanta roupa. E nem porque compro, eu ganho muita roupa de patrocinadores, e de marcas que querem que eu vista suas peças para divulgar nas minhas redes sociais etc.

O meu olhar para o inapropriado socialmente sempre foi um desafio. Porque as pessoas não entendiam o que eu estava fazendo, não viam o que eu via. Minha busca na mudança de função para os objetos era sobretudo um exercício criativo de uma mente inquieta. Tudo isso, aliado ao desejo por quebrar regras. Não sei explicar o motivo, mas, sempre tive disposição para questionar ordens e limites. Meu Pai dizia que eu era muito atrevido e questionador. E quando isso acontecia, ele nem se reportava a mim, mesmo eu estando na frente dele. Ele falava: “Sônia (minha Mãe) esse menino não tem limites. Tudo ele pergunta e quando a gente responde ele questiona!” Na verdade, não era tudo o que eu ouvia que atendia as minhas expectativas... E olha, que o meu Pai foi de longe a pessoa mais inteligente que conheci pessoalmente. Além disso, Ele foi tão inventivo e vivia dando outras utilidades a tudo na nossa casa. Criava o possível do impossível. E ainda reclamava de mim... Hehe...

Por outro lado, minha inquietação mental me levou a uma condição criativa que me proporcionou muito! Meu ofício como artista me trouxe muito êxito e prosperidade. Contudo, a inquietude persiste! E isso; essa inquietação contribui e muito no meu processo criativo. Eu penso muito, muito mesmo. O tempo todo. E vejo quase tudo de outra forma. E não é uma condição “calculada”! simplesmente as ideias de desconstrução chegam a todo tempo na minha mente. Há momentos que tento não pensar assim, mas, é muito mais forte do que minha própria vontade. Não dá para controlar uma Mente Autista! Não mesmo! Meu pensamento contínuo beira a obsessão às vezes. Bem, não sei se a palavra é essa. Mas é perturbador em certos momentos. Contudo, tento, na medida do possível, extrair o melhor desses pensamentos, muitas vezes soltos, e dar funcionalidade a eles. E é comum eu conseguir esse feito. Traz sentido lógico e muita funcionalidade na desconstrução. É como organizar o caos!

Quando adolescente minhas Tias me convidavam para ajudar na produção das festas de aniversários da nossa Família. Minha aptidão para a culinária se manifestou desde menino vendo minha Mãe cozinhar e fazer deliciosas quitandas. Daí, por anos eu era quem fazia muitos dos bolos de aniversários de Primos e Primas. Ainda faço bolos de aniversário para um ou outro Amigo e sempre sou eu mesmo quem faz os meus. Eu gosto na verdade. Acho que essa tarefa de ajudar nas festas da minha Família se dava em função da minha facilidade de construir algo grandioso, partindo de um cenário de pouca possibilidade. Era magnifico, e ainda é, transformar o “comum” em algo extraordinário!

Me incomoda muito ver algumas pessoas com preguiça de pensar. Não tenho tempo para isso. Creio que muito do que somos e do que podemos nos tornar começa nas ideias. Nos nossos pensamentos. Preguiça de pensar é o mesmo que ter preguiça de viver. Buscar outros experimentos é revelador.

A terapia pessoal e individual é fundamental para todos. Todos, sem distinção! E quando a gente olha pra trás e nos reconhecemos é algo tão fascinante... Não é fácil de se explicar. Penso que muito do que somos hoje é uma versão atualizada do início de nossas vidas. É um exercício diário olhar para trás. Não estou falando de saudosismo e/ou melancolia. Não é disso que estou falando. Estou, em facto, falando do futuro! É um importante e eficaz exercício, para mim, olhar para o meu passado para que eu tenha objetividade no meu presente e, maiormente, projetar o meu futuro! É corriqueiro eu estar criando algum trabalho vanguardista ou mesmo desafiador e eu olhar para mim com seis (06) anos de idade. Sempre visito o menino lá trás para reconhecer o homem que sou na atualidade. Esse menino vivo em mim me ensina tanto. E o tanto que ainda sou parecido com ele... É um treinamento quase que diário. Olhar para dentro da gente e para o nosso passado mais remoto é a grande possibilidade de crescermos em todos os sentidos da nossa Vida! O resgate de memórias nem sempre é doce, mas, é necessário. Quando a lembrança não é agradável o caminho é extrair o ensinamento daquela passagem. Filtrar o aprendizado é primordial e nem sempre fácil, porém, nos molda dia a dia e o melhor; sem perder nossa essência!

A auto aceitação do meu diagnóstico de Autismo foi uma verdadeira libertação para mim. Sempre fui repreendido por isso ou aquilo que era, pelo olhar dos neuroatípicos, como não apropriado. Essa palavra é tão dura para mim! O não apropriado para muitos, é na verdade, o que é conveniente para “eles”. Minhas questões dentro do espectro vão além da hipersensibilidade sensorial, ao toque, pensamento concreto, estereotipias, movimentos de repetição, crises de ansiedade e depressivas etc; uma questão tão importante, negativamente analisando, é o facto de tentar (muitas vezes sem sucesso) agradar socialmente. Se adequar ao “apropriado” aos neuroatípicos é tão difícil. É duro. Muito duro. Especialmente, porque muitos dão tanta importância a questões sociais que não iram nos levar a lugar algum. Tão pouco nos trará considerável evolução. Entretanto, nunca se falou tanto em neurodiversidade. E qual o “papel” dessa evocação? Porque se celebra a diversidade de pensamentos, em um momento onde a polarização de pensamentos grita ao redor do mundo? Sim! Se fala muito da polarização de forma negativa em se tratando do Brasil. Contudo, assistimos esse fenômeno ecoar nos quatro cantos do mundo! O radicalismo que assola o planeta é algo tão retrógado quanto os idos do início da civilização moderna. Há tanta gente que se auto denomina como sendo culta, letrada ou superior, falando de forma opressora e tentando mostrar o caminho das ideias e de projetos certos, tentando “nortear” os demais para um sucesso que elas mesmas nunca alcançarão!

Olhar para dentro de si é assistir a tudo e a todos que compartilharam conosco. É dividir com os outros nossas vivencias e filtrar o que importa! O alimento da indiferença, da intolerância, da discriminação e do “apropriado” se dá na própria incompetência intelectual daqueles que só tem olhos para o presente.

Uma mente criativa não se limita apenas em criar algo novo ou dar outros sentidos às coisas e aos objetos. Uma CRIATIVAmente, também, trabalha o resgate de memórias no intuito de estar em constante evolução mental e contribuir para transformar a qualidade de pensamentos daqueles à sua volta. É isso! Agora eu preciso ir ali fora; para pegar uma estrela no céu e guarda-la dentro da minha cueca azul. Porque tenho que manter o órgão que me define homem sempre iluminado...

Ernane Alves