"Rearviewmirror" - Espelho Retrovisor [Artigo]
Quando
encontramos no próximo um lapso da nossa própria identidade...
A identificação é algo confortante para todos nós. Creio que entre os Autistas é ainda mais significativo ver no outro um pouco de nós mesmos. É com essa percepção que trago uma reflexão um tanto universal: Encontrar a si no outro!
Recorrentemente muitas
famílias escrevem para minha assessoria querendo um “momento” comigo. Seja presencial
ou por meio de videoconferência. Infelizmente, não consigo responder a todas as
mensagens que recebo diariamente nas minhas redes sociais ou no fale conosco do
Blog LUZ AZUL, quiçá me encontrar com todos. Eu entendo esse desejo de
muitos quererem me conhecer, especialmente porque eu estou no Espectro Autista.
De alguma forma, sei que muitos pais veem em mim uma espécie de projeção do
futuro dos seus filhos. Já ouvi isso inclusive. É certo que ouvir isso não é
nem de longe algo que me alegre, sobretudo, porque me sinto tão menos especial
do que muitos projetam que eu seja. Além disso, essa “responsabilidade” pode me
levar em um lugar que eu não quero visitar. Tento sempre ser muito prudente em
minhas colocações e me posiciono sempre em relação a isso: a Expectativa
alheia. Contudo, minha equipe sempre seleciona algumas mensagens para eu ler e
eu me emociono com a maioria delas. A partir disso, na medida do possível,
passei a responder algumas dessas mensagens que recebo de forma
descompromissada. Descompromissada, porque nem de longe quero ter o peso de ser
uma “inspiração” para alguém, especialmente para um neuroatípico. E o mais inesperado,
para mim neste momento, aconteceu; me encontrei com duas famílias na última
semana.
Carolina Coutinho, Adriane Ramiro, Eu e Rúbia Moura |
Observar os olhos daquela
menina me lembrou algumas das lindas canções do The Cure. Os pequenos e
lindos olhos da Carolina aliados à inteligência latente dela são como olhar
para a esperança. Muitas vezes, ressabiada, ela introduzia algum assunto na
conversa e quando percebia aquela atenção ela disparava a falar. E para nós
Autistas, é difícil falar na mesma velocidade que pensamos. Porque pensamos
rápido demais. E a palavra articulada não pode acompanhar nosso rápido raciocínio.
O mais curioso é que eu entendi toda aquela mensagem que a Carolina estava
passando. Sabia exatamente onde ela queria chegar. E o melhor, senti que ela
irá chegar onde ela quer chegar. Me vi muito nela. Assim como me pareceu a
Carolina; para eu ouvir um “Não” dos outros é somente uma “vírgula” no meio do “texto”
da vida. Ao final nós, pessoas como eu e a Carolina, somos tão capazes, mesmo
ante todos os impedimentos, - não somente do nosso Espectro, mas, sobretudo da
vida - de mudar o curso das coisas e fazer mais e melhor do que aquilo que
tentaram arquitetar para a gente. Olhar/perceber a Carolina, foi como olhar
para dentro de mim mesmo. Foi saudosismo sadio. Embora, eu ainda seja muito
assim como ela. Daí, penso que o saudosismo vem do tempo onde eu filtrava menos
antes de falar, embora isso ainda ocorra comigo; quando percebo já falei.
João Pedro |
Noutro momento daquela
enriquecedora conversa, o pai dele, o Renato, entrou para conversarmos. Ele contou
algumas passagens do João Pedro e quando ele relatou sobre a incrível memória
do filho foi tão importante para mim. Digo isso porque muitas das vezes foi a
minha memória que me “salvou” de situações que poderiam ser difíceis para mim. E
o João Pedro é assim; lembra de datas, cores, ele faz associações para
contextualizar factos. E isso é extremamente importante para uma mente Autista.
Claro! O cérebro é um músculo que precisa se exercitar! E nada melhor para a saúde
mental que expandir a capacidade de pensar e isso aquele jovem já sabe. E falando
em se exercitar, o João Pedro treina Muay Thai, eu treinei por anos esse mesmo
esporte. Atualmente me dedico ao Boxe. Caramba! Foi muito bom conhecer o João
Pedro porque ele confirma a realidade de que não estamos sozinhos.
Eu entendo a importância para muitas
pessoas quererem estar comigo de algum modo. Em contraponto, foi tão importante
para mim ter estado com aquela sintonizada família. É um treino da existência. É
a certeza da assimilação. A “fome” de viver do João Pedro aliado a sua
preocupação em ser aceito na sociedade eram tão familiar para mim. E ainda é
assim. Mas, eu disse a ele que; “nada é tão importante assim! Que nada vale
tanto a pena assim!” Especialmente, em se tratando de tentar ser “apropriado
socialmente”. De algum modo, esse esforço em tentar ser a “peça” certa a se
encaixar na sociedade – que eu mesmo tanto busquei ao longo da minha ainda
tenra existência – é uma busca ineficaz. Porque nós, todos nós, Autistas ou não
sofreremos a rejeição de um grupo ou outro independentemente da razão. E se auto
aceitar é o que realmente importa! Aceitar-se e ao mesmo tempo melhorar-se
internamente é muito saudável para nossa existência. As angustias do João Pedro
são similares às minhas, de toda uma vida. Por isso; ouvido ele, foi um auto
exercício, porque sou como ele em vários aspectos. O João Pedro, é de alguma
forma, o garoto que eu fui e ainda vive dentro de mim. Porque o resultado de
tudo aquilo que vivi é o reflexo presente do que me tornei. Se enxergar no
outro é sobretudo a beleza da conexão, da identificação. Vi tanta LUZ no João
Pedro. Ele é muito LINDO – no sentido mais amplo da palavra!
Espero ter sido amável com
eles, a Carolina e o João Pedro, porque eles apresentam tanto de mim. Eles são
um eco, mesmo que leve, da minha adolescência. É como se eu tivesse entrado na
Kombi Mágica e olhasse pelo espelho retrovisor... Eu preciso ouvir, agora, a canção "Rearviewmirror" do Pearl Jam.
Com Amor,
Para Carolina e João Pedro!
Ernane Alves