"Rearviewmirror" - Espelho Retrovisor [Artigo]

Quando encontramos no próximo um lapso da nossa própria identidade...

A identificação é algo confortante para todos nós. Creio que entre os Autistas é ainda mais significativo ver no outro um pouco de nós mesmos. É com essa percepção que trago uma reflexão um tanto universal: Encontrar a si no outro!

Recorrentemente muitas famílias escrevem para minha assessoria querendo um “momento” comigo. Seja presencial ou por meio de videoconferência. Infelizmente, não consigo responder a todas as mensagens que recebo diariamente nas minhas redes sociais ou no fale conosco do Blog LUZ AZUL, quiçá me encontrar com todos. Eu entendo esse desejo de muitos quererem me conhecer, especialmente porque eu estou no Espectro Autista. De alguma forma, sei que muitos pais veem em mim uma espécie de projeção do futuro dos seus filhos. Já ouvi isso inclusive. É certo que ouvir isso não é nem de longe algo que me alegre, sobretudo, porque me sinto tão menos especial do que muitos projetam que eu seja. Além disso, essa “responsabilidade” pode me levar em um lugar que eu não quero visitar. Tento sempre ser muito prudente em minhas colocações e me posiciono sempre em relação a isso: a Expectativa alheia. Contudo, minha equipe sempre seleciona algumas mensagens para eu ler e eu me emociono com a maioria delas. A partir disso, na medida do possível, passei a responder algumas dessas mensagens que recebo de forma descompromissada. Descompromissada, porque nem de longe quero ter o peso de ser uma “inspiração” para alguém, especialmente para um neuroatípico. E o mais inesperado, para mim neste momento, aconteceu; me encontrei com duas famílias na última semana.

Carolina Coutinho, Adriane Ramiro, Eu e Rúbia Moura
Na segunda-feira, 21 de junho de 2021, me encontrei com a Carolina Coutinho, uma jovem e promissora escritora. O encontro foi um pedido da minha Amiga Rúbia Moura. Nos encontramos em uma sorveteria perto da minha casa, eu, a Rúbia, a Carolina e sua mãe a Psicóloga e Educadora Parental Adriane Ramiro. Era fim de tarde e apesar do frio – era o início do inverno – marquei nesta sorveteria, porque era próxima da minha casa e em um intervalo de trabalho. Eu tinha 40 minutos livres para aquele encontro, contudo, ficamos por pouco mais de uma hora conversando. A Carolina é muito produtiva, segundo ela, escrever é uma aptidão. A mãe concluía suas falas no sentido de contextualizar sua narrativa. Confesso que fiquei muito surpreso em ver tanta energia literária em uma jovem de apenas 17 anos de idade. Em um momento onde a internet impera, especialmente entre os jovens, que percebo cada vez menos interessados em “pensar” quiçá em escrever. Escrever é uma libertação para mim! E conhecer uma menina neuroatípica, invariavelmente muito inteligente e super interessada em publicar seus livros foi revitalizante para mim. Sim! A energia de pessoas muito jovens pode ser muito desgastante para muitos, porém, para mim é como um “resgate” da minha essência. Eu fui um garoto muito ansioso e queria fazer, produzir muito em muito pouco tempo. E a Carolina é meio assim como eu fui aos 17 anos. Acho que ainda sou um tanto assim. Mas, o exercício de observar o outro – quando há identificação – é uma forma de evoluir ou de ao menos melhorar a maneira de lidar com a própria ansiedade. Estou realmente curioso com as “histórias” da Carolina, ela fala com tanto entusiasmo das personagens dela que parecia eu com toda essa minha paixão pelo meu trabalho. Espero em breve ler um livro dela. Ela me disse que tem dois ou três títulos disponíveis de forma virtual. Mas, ela quer mesmo é publicar um livro á moda antiga: Impresso. Eu concordo com ela. Eu nunca li um e-book, acho pouquíssimo provável que algum dia eu leia um livro pelo meu computador ou pelo aparelho móvel celular. Eu leio muito. Mas, só leio livros impressos. Inclusive, houve mais essa identificação minha com a Carolina; a valorização do livro impresso. Ela me pareceu muito ansiosa com isso. Eu tentei explicar a ela que nem sempre as “coisas” são no tempo que a gente quer. Ela me pareceu mais acalmada e me ouviu atentamente. Eu me senti meio que um estranho falando para mim mesmo, porque sou tão ou mais ansioso quanto ela. Mas, sei que eu estava dando o conselho certo. O Cinema me ensinou a ter paciência. Trabalhar com cinema é, em suma, um exercício de paciência e haja paciência.

Observar os olhos daquela menina me lembrou algumas das lindas canções do The Cure. Os pequenos e lindos olhos da Carolina aliados à inteligência latente dela são como olhar para a esperança. Muitas vezes, ressabiada, ela introduzia algum assunto na conversa e quando percebia aquela atenção ela disparava a falar. E para nós Autistas, é difícil falar na mesma velocidade que pensamos. Porque pensamos rápido demais. E a palavra articulada não pode acompanhar nosso rápido raciocínio. O mais curioso é que eu entendi toda aquela mensagem que a Carolina estava passando. Sabia exatamente onde ela queria chegar. E o melhor, senti que ela irá chegar onde ela quer chegar. Me vi muito nela. Assim como me pareceu a Carolina; para eu ouvir um “Não” dos outros é somente uma “vírgula” no meio do “texto” da vida. Ao final nós, pessoas como eu e a Carolina, somos tão capazes, mesmo ante todos os impedimentos, - não somente do nosso Espectro, mas, sobretudo da vida - de mudar o curso das coisas e fazer mais e melhor do que aquilo que tentaram arquitetar para a gente. Olhar/perceber a Carolina, foi como olhar para dentro de mim mesmo. Foi saudosismo sadio. Embora, eu ainda seja muito assim como ela. Daí, penso que o saudosismo vem do tempo onde eu filtrava menos antes de falar, embora isso ainda ocorra comigo; quando percebo já falei.

João Pedro
Na sexta, 25 de junho, me encontrei de forma virtual, pelo Google Meet, com o João Pedro e sua família. No início, confesso que fiquei um pouco assustado com a empolgação daquele reluzente jovem. Realmente, ainda não me acostumei com a ideia que sou em facto uma figura pública artística e o que isso representa, sobretudo em se tratando de eu ter Autismo. Por algum tempo deixei somente ele falar, eu não sabia como iniciar minha fala. Em suma, eu não sei lidar com elogios, nunca sei o que dizer. E eu estava ali diante de uma situação que eu poderia perder o rumo da conversa, mas, fiquei observando o João Pedro falar e vi o Ernane com 19 anos de idade. Olha que coincidência; naquele dia foi o aniversário de 19 anos daquele jovem estudante de cinema. Enquanto a mãe dele, a Cátia, se apresentava, eu ganhava tempo para pensar em um rumo para aquela conversa. Na verdade, a Cátia escreveu para o meu Instagram solicitando uma possível conversa comigo. Minha assessoria organizou minha agenda para aquela videoconferência no final da tarde. Com poucos minutos de conversa eu já tinha entendido o que eu estava fazendo ali. Claro, não é fácil e nem um pouco confortável, para mim, conversar com pessoas que eu nunca havia visto antes. Os neurotípicos chamam de “quebrar o gelo” quando se referem à ignorar os protocolos socias e deixar fluir uma conversa naturalmente. Ratifico, que esse tipo de situação não é nem de longe fácil para mim. Porém, a “mágica” aconteceu: Novamente, na mesma semana, conheço outro jovem que me remete à um passado não tão distante. O João Pedro é um garoto extremamente inteligente e amável. As identificações iam surgindo ao decorrer da conversa, que foi um tanto desconstruída ante tantos assuntos, mas, principalmente foi diversamente construtiva. Sua irmã, Maria Eduarda, é quem cuida e ajuda da parte visual do João Pedro. Ela o orienta tanto em relação ao corte de cabelo e as roupas que são legais. E isso é fundamental, digo com propriedade porque nunca fui amigo do espelho, eu já disse que eu tenho baixa autoestima, mas isso vem melhorado. O João Pedro é um tipo de “retrato” do passado para mim. Senti tanta empatia – algo raro em mim por causa da minha condição – e o meu exercício de empatia é tentar encontrar algo caro a mim nas histórias alheias, porque tenho dificuldade em me “colocar no lugar” dos outros. Mas, o João Pedro me era tão familiar. Carinhoso, muito bem educado, atento e lindo. Era como se eu estivesse me vendo conversar aos 19 anos de idade.

Noutro momento daquela enriquecedora conversa, o pai dele, o Renato, entrou para conversarmos. Ele contou algumas passagens do João Pedro e quando ele relatou sobre a incrível memória do filho foi tão importante para mim. Digo isso porque muitas das vezes foi a minha memória que me “salvou” de situações que poderiam ser difíceis para mim. E o João Pedro é assim; lembra de datas, cores, ele faz associações para contextualizar factos. E isso é extremamente importante para uma mente Autista. Claro! O cérebro é um músculo que precisa se exercitar! E nada melhor para a saúde mental que expandir a capacidade de pensar e isso aquele jovem já sabe. E falando em se exercitar, o João Pedro treina Muay Thai, eu treinei por anos esse mesmo esporte. Atualmente me dedico ao Boxe. Caramba! Foi muito bom conhecer o João Pedro porque ele confirma a realidade de que não estamos sozinhos.

Eu entendo a importância para muitas pessoas quererem estar comigo de algum modo. Em contraponto, foi tão importante para mim ter estado com aquela sintonizada família. É um treino da existência. É a certeza da assimilação. A “fome” de viver do João Pedro aliado a sua preocupação em ser aceito na sociedade eram tão familiar para mim. E ainda é assim. Mas, eu disse a ele que; “nada é tão importante assim! Que nada vale tanto a pena assim!” Especialmente, em se tratando de tentar ser “apropriado socialmente”. De algum modo, esse esforço em tentar ser a “peça” certa a se encaixar na sociedade – que eu mesmo tanto busquei ao longo da minha ainda tenra existência – é uma busca ineficaz. Porque nós, todos nós, Autistas ou não sofreremos a rejeição de um grupo ou outro independentemente da razão. E se auto aceitar é o que realmente importa! Aceitar-se e ao mesmo tempo melhorar-se internamente é muito saudável para nossa existência. As angustias do João Pedro são similares às minhas, de toda uma vida. Por isso; ouvido ele, foi um auto exercício, porque sou como ele em vários aspectos. O João Pedro, é de alguma forma, o garoto que eu fui e ainda vive dentro de mim. Porque o resultado de tudo aquilo que vivi é o reflexo presente do que me tornei. Se enxergar no outro é sobretudo a beleza da conexão, da identificação. Vi tanta LUZ no João Pedro. Ele é muito LINDO – no sentido mais amplo da palavra!

Espero ter sido amável com eles, a Carolina e o João Pedro, porque eles apresentam tanto de mim. Eles são um eco, mesmo que leve, da minha adolescência. É como se eu tivesse entrado na Kombi Mágica e olhasse pelo espelho retrovisor... Eu preciso ouvir, agora, a canção "Rearviewmirror" do Pearl Jam.

Com Amor,

Para Carolina e João Pedro!

Ernane Alves