Além de um cara com tênis vermelho! [Resenha]

 

Acabei de ler o livro Colapso Azul de Ernane Alves, da Páginas Editora. Fui ao lançamento no Palácio das Artes em Belo Horizonte no dia 11/09/21. Fico emocionada ao ler a dedicatória do autor!

Conheci Ernane em uma reunião da Comissão de Associações de Defesa dos Direitos dos Autistas CADDA. Um homem com aspecto de adolescente e tênis vermelhos, que se recusou a estender a mão quando fomos apresentados, ofereceu uma obra sua para divulgação de nossas atividades de conscientização sobre o autismo em 2020 e me impressionou com sua capacidade de argumentação. A não reciprocidade marcada no gesto de me deixar com a mão estendida no ar naquele primeiro encontro deu início ao que considero uma bonita interação. Admiro esse cara capaz de, com muita coragem, entusiasmo e dinamismo, ascender socialmente através das artes!

Colapso Azul é o relato de uma experiência singular, atravessada pelos aspectos (a meu ver, positivos) que o diagnóstico de autismo teve para Ernane. Não há tentativas de explicação, nem de um encadeamento lógico que tente dar conta da “Força da Natureza” de uma vida movida a impulsos, arte e criatividade. Amor e trabalho se fazem presentes ao som de rock-and-roll. Sim, é um livro com trilha sonora!

O interesse na subjetividade das pessoas me fez psicanalista, além de psiquiatra. E eu esperava ver mais da subjetividade do Ernane no livro. Não! As coisas são o que são, fluem. E muito do sentimento fica diretamente acoplado ao fundo musical.

A distância entre o funcionamento social do Ernane e o da média das pessoas é aparentemente muito menor do que aquela entre ele e meus filhos gêmeos que não falam. E o colapso que eu vivi ao ter o diagnóstico deles após ter aprendido que o autismo seria uma condição causada por uma patologia do vínculo entre mãe e bebê não se parece com nada do que vi no livro.

Meu percurso em prol do reconhecimento da dignidade da pessoa humana e da construção de cidadania para pessoas com autismo em nosso país tem pouca visibilidade, mas parece reverberar.

Antes de conhecer Ernane, havia escrito em uma rede social:

Azul é cor do céu. Que é para todos. Nos lembra a Natureza que nos antecede e é muito maior do que qualquer grandeza que nossa civilização já construiu. Em abril nos lembra o autismo, pede respeito à biodiversidade humana.

O livro testemunha a força e o poder da biodiversidade humana. Ao se ver único e respeitar a Força da Natureza em si, nos seus pais, na sua história, a lição que fica é de otimismo: não há formulas prontas, o sentido da vida não é dado e acabado, a ilusão de perfeição humana não ajuda. Resta-nos VIVER! Reconhecer e ir além de nossas filiações biológicas, sociais, teóricas, religiosas, políticas e culturais. Reinventar-nos sabendo, mesmo que com dor, da nossa pouca importância, mortalidade e perspectiva de esquecimento. Participar do Universo, agregando e crescendo constantemente.

Chega a ser constrangedora a falta de pudor com que Ernane se apresenta. Conviver com pessoas com autismo exige revisão de nossos códigos, exige que reformatemos padrões de comportamento. Sair do piloto automático! A adesão automática à manada leva a atropelos, preconceitos e violência. Somos animais sociais e se sentir incluído e respeitado é vital para todos nós. A diversidade é intrínseca à vida!

As classificações internacionais de doenças e de transtornos mentais são ferramentas importantes para oferecer ajudas específicas a pessoas que podem se encontrar em desvantagem. Existem para promover e direcionar os cuidados e a necessidade de adaptações para promoção da equidade, não para rotular pessoas. Jamais deveriam ter sido usadas para estigmatizar, excluir e até mesmo encarcerar. Nenhum “código de barras” ou de linguagem irá traduzir quem quer que seja! Experiências, sentimentos, sensações, impulsos e desejos não se esgotam em palavras, conceitos ou representações. Reconhecer o que colapsa em nós, o que foge a qualquer código que nos constitui e atravessa, pode nos adoecer, mas nos torna humanos. Não somos máquinas de repetição, nem escravos do sistema. Se há quem, por inércia ou comodismo, se pareça com algo assim, esse NÃO pode ser o protótipo da saúde mental. Neuroatípico é um conceito criado para clarear e legitimar diferentes formas de estar no mundo e decodificar o que nos cerca. Preocupa-me a ideia subliminar de que “neurotípico” seria uma adesão fácil ao que é preestabelecido. Combinados e convenções facilitam as trocas entre pessoas. Nascemos imersos no que ficou sedimentado dos combinados daqueles que nos antecederam. Respeitar e fazer bom uso dessa herança dá trabalho. Somos estruturados e nos apropriamos dos códigos sociais de diferentes formas. Que saibamos usa-los como ferramentas a criar possibilidades e não como amarras que podem nos desumanizar.

O encontro com o inesperado e diferente pode trazer desconforto, dissonâncias, necessidade de novos ajustes. Mas tudo isso é aprendizado. Eu descobri que minha voz, que sempre achei desafinada, pode acalmar.

Um colapso pode ser Azul! Azul pode ser a esperança de dias melhores para pessoas que até há pouco tempo eram vistas como fortalezas vazias, pouco amadas, mal educadas ou como se estivessem em outros planetas. Pode significar respeito e esperança para a nossa espécie nesse planeta que não é apenas nosso.

Obrigada por seu testemunho, Ernane!

 Maria Helena de Azeredo Roscoe

Psiquiatra e Psicanalista