Selfies, Curtidas, Comentários e outras Drogas Digitais. [ARTIGO]

As redes sociais podem ser um terreno fértil para pessoas mal intencionadas, especialmente se do outro lado da “tela” estiver um indivíduo neuroatípico. É muito comum, entre os Autistas, a dificuldade de ser ler as intenções das outras pessoas. E quando essa relação social se dá por meio virtual as consequências podem ser ainda mais catastróficas! Isso porque; além da questão de a outra pessoa não estar presente – o que dificulta uma mínima interpretação de ações –, ainda inclui o facto das tão temidas (ao menos para mim) gírias e metáforas cibernéticas. Mesmo com o meu repertório mais vasto em relação à metáforas devido a minha vivência, ainda surgem novas metáforas criadas por alguém que se comunica sem ser concreto. Sobretudo, na “linguagem de internautas”, há aqueles que ainda usam emojis (aquelas carinhas animadas e coloridas) para completar uma frase ou outra. Toda essa “mistura” de comunicação virtual pode maximizar a dificuldade de interpretação de alguém, que como eu, tem o pensamento concreto.

Profissionalmente, sempre tive uma obra marcada pela sexualidade. Tanto no cinema quanto na pintura, expresso a sensualidade humana. E assim como qualquer outro artista, o meu trabalho tem muito de mim, do que eu acredito, penso ou gosto. Entretanto, ter uma produção onde exploro de forma poética a sexualidade não é, em prática, um convite à indiscrição – muitas vezes grosseira – alheia. Quando tornei público o meu diagnóstico de TEA (em novembro de 2019), eu já era um artista famoso e respeitado, com mais de dezoito anos de carreira. Contudo, para algumas pessoas, o meu fazer artístico (mais sensualizado) pregresso fora “apagado”. Isso se deu, porque muitas pessoas enxergam o Autista como alguém que deve ser tratado de forma muito diferente e sexualmente ainda mais; muito em função da infantilização que os outros nutrem a respeito das pessoas com TEA. Senti em alguns traquejos sociais que alguns passaram a me tratar como se eu não tivesse mais que exercer minha sensualidade masculina por eu ter Autismo. Ora, eu bebo, pouco, mas bebo, transo, faço essas coisas todas e já me droguei muito quando adolescente. Em outras palavras; minhas necessidades físicas são iguais a de qualquer outro homem, neurotípico ou não!

Por outro lado, no entanto, de forma mais sombria, houve, inclusive em grande quantidade, pessoas que passaram a me procurar nas redes sociais com intensões maliciosas. Essas “investidas” vieram tanto de pessoas que eu não conheço, quando de pessoas que já conhecia, mas não tinha a menor intimidade. Essas “situações” ocorreram em iniciações de conversas aparentemente cordiais, oriundas da outra parte. Particularmente, tendo sempre a ser educado, justamente por já ter sofrido muito com minha falta de “filtro” e traquejo social nas conversações. Daí, procuro ser educado sempre. Muitas vezes não percebia em priori as verdadeiras intenções daqueles que se valem de uma falsa sensação de “anonimato virtual”. A associação de gírias virtuais aliadas à emojis e minha dificuldade de interpretar os intentos de outrem se tornam a receita perfeita para eu “cair” em um assédio por meio virtual. É muito triste descobrir que por meio de um “elogio” pelo meu trabalho, na verdade, em determinadas situações a iniciação de uma conversa irá apenas saciar um desejo físico de um pervertido que usa dos meios mais subversivos para satisfazer uma vontade que é somente de uma parte. Essa atitude é a violação virtual em suma!

Muitas vezes, somente após dias depois de uma conversa é que eu entendia que as intenções daquele indivíduo eram outras. Que aquela aproximação não era pelo meu trabalho como artista, mas, sim pelo facto de que a pessoa sentia-se atraída por mim e aproveitou-se, percebendo logo no início de uma conversa, que eu tenho dificuldade para “sacar” o que ele realmente queria comigo. E sinto muita raiva de mim mesmo, por me sentir incapaz de detectar de forma imediata uma ameaça externa. Digo “ameaça”, porque é muito invasivo essa aproximação e faz muito mal para a autoestima e segurança emocional de uma pessoa neuroatípica.

Tudo começa com uma “curtida” e depois um “comentário” numa photo de trabalho. Uma photo de algum trabalho meu, ou mesmo de uma campanha, ou de um projeto artístico, era só um pretexto para a pessoa comentar sobre uma outra photo onde estou usando somente cueca ou sunga. É inacreditável que já ouvi; “Você é autista, mas, tem fotos suas de cueca no seu Instagram” ou que “Nessa foto seu pênis ficou marcado na cueca” e às vezes os comentários vinham acompanhados de um “kkkk”, só eu sei o tanto que desprezo essa expressão. Esse “kkkk”, que muitos acreditam ser um gesto de aproximação, para mim é o suficiente para eu encerrar uma conversa por meio digital. Reflito comigo mesmo; antes de ser Autista, sou um Homem e tenho direito de exercer minha sensualidade. E exercer minha sensualidade não é uma “carta branca” para alguém sentir-se no direito de me assediar de forma invasiva na internet, sobretudo, se valendo da minha falta de astúcia em reconhecer rapidamente que a real finalidade daquela pessoa é extrair o máximo de minha intimidade para si. E é comum me pedirem nudes (photos sem roupa) por meio de mensagens nas redes sociais. Isso é triste. É duro. É feio. Mas acontece recorrentemente. O tempo todo. Para mim, o assédio se dá quando eu digo NÃO e a outra parte insiste na investida e ainda põe em questão a minha sanidade e capacidade de me relacionar socialmente.

Lembro-me, quando menino, da minha Mãe sempre conferir minha mochila, quando chegava da escola, para ver se tinha algo de diferente comigo. Ela literalmente me policiava. E isso foi muito bom. E na minha geração as crianças não tinham acesso à internet, quiçá a um aparelho móvel celular. Se o acesso indiscriminado à internet pode ser perigoso aos adolescentes, que por sua vez costumam se arriscar, imaginem um adolescente neuroatípico, sem a supervisão dos pais. Penso; muitas coisas/experiências – por vezes ruins – começam numa “curtida” e/ou “comentário” em uma photo sua numa rede social...

Mesmo tendo personalidade forte, confesso que já fiz uma coisa ou outra para me sentir “incluído” numa turma de jovens. Já comprei uma roupa da moda, mesmo não gostando tanto, para ser aceito num grupo. E sim; às vezes faço uma selfie no espelho usando apenas cueca para mostrar que estou com o corpo em forma. Sim. Tenho Autismo leve, mas antes disso, sou um ser humano. Sou um homem, com todos os conflitos internos e inseguranças aos quais tenho direito como pertencente à raça humana. Preciso comer algo agora. Nestes dias tenho malhado mais tempo que o habitual e isso me dá muita fome. Na verdade, nada está me enchendo/satisfazendo, acho que porque cortei açúcar, farinha de trigo e leite da minha dieta já há umas seis semanas...

Ernane Alves