Autismo e Roupas Íntimas – Qual a escolha certa? [ARTIGO]

Ernane Alves para Mash., março de 2023.

A minha hipersensibilidade ao toque é tão significativa que; se uma formiga andar pelo meu corpo, já é o suficiente para eu me “desorganizar”. Daquelas formiguinhas minúsculas mesmo. As que adoram ficar andando em açúcar e em alimentos doces. Para mim, elas pesam uma “tonelada”. É um sofrimento ininterrupto conviver com um corpo tão sensível ao toque, como é o meu. Arrisco dizer que esse é um dos fatores determinantes para a minha falta de habilidade social. Já deixei de frequentar lugares por causa do excesso de gente. Apesar de já ter ido a shows — tem que valer muito o sofrimento —, evito ao máximo esse tipo de contacto. Estou escrevendo sobre isso para fazer um paralelo com um aspecto sobre o qual nunca li nada a respeito: a hipersensibilidade em função de roupas íntimas. Quando eu tinha nove ou dez anos, lembro-me de me incomodar com certas peças que usava. Houve uma vez em que eu estava sentado no sofá da minha casa e bastante irritado. Eu sabia o porquê, mas não o motivo. O porquê era estar sem cueca, e o meu pênis ficar mudando de lugar conforme o meu movimento. Minha Mãe, ao perceber minha inquietude, me perguntou o que se passava comigo, e eu disse: “é o meu pênis. Ele não fica quieto! Eu ponho ele para um lado, e ele se move para o outro” (naquela época, eu costumava deixá-lo para o lado esquerdo). Minha Mãe argumentou que era porque eu estava sem cueca, porque as minhas estavam sendo lavadas. Como eu tinha poucas, todo aniversário, em vez de brinquedos, eu torcia para ganhar cuecas.

Mais tarde, quando comecei a comprar minhas roupas, percebi que o meu corpo reagia diferente de acordo com as cuecas que eu usava. Não apenas o meu corpo, mas sobretudo a minha cabeça. Sim! O meu humor é um fator determinante para eu escolher qual cueca vou usar no dia. Comumente, faço variações entre cuecas trunk, boxer e slip. As trunk e boxers são as mais compridas, parecem um shortinho. Já as slip são as mais clássicas, curtas e sem perna. E prefiro que sejam low rise (cintura baixa). Porém, há uma grande variedade de cortes e acabamentos nesses três modelos. Sempre opto pelos que têm a parte frontal com recorte anatômico, em tecido duplo, o que me proporciona total aderência, um perfeito ajuste ao meu corpo e mais conforto. Além disso, necessariamente têm que ser 100% algodão, porque tenho resistência com tecidos sintéticos e/ou com muito poliéster. Sobre a questão do conforto e da anatomia dos modelos, dependendo do meu estado de humor, uma trunk ou boxer me proporcionará mais conforto e a sensação de não estar usando nada. É como se o meu pênis estivesse livre no espaço, mas não está. Já me perguntaram: “por que você não fica sem cueca quando quer se sentir mais livre?”. É simples: trata-se apenas de uma “sensação” de não estar usando nada. Usar cueca me previne de situações constrangedoras. Todos os homens sabem que ereções indesejadas podem acontecer, e em lugares improváveis. É muito difícil de controlar, menos ainda de disfarçar. Sei que pode parecer bobo, mas não é. Os meninos sabem bem disso. Já uma cueca slip traz mais sustentação e deixa o membro mais perto do corpo. É como se “abraçasse” o meu pênis, deixando-o mais seguro, preso. É uma percepção que não me incomoda, mas sinto que estou usando cueca o tempo todo. É apenas uma questão de sensibilidade.

O grande problema de escolher uma cueca para usar, a partir do meu humor é que tenho muitas variações de humor ao longo do dia. Então, tenho, em meio a dezenas de cuecas, as que são quase perfeitas para qualquer ocasião, as “peças-curinga”. Tenho cerca de duzentas cuecas. Eu achava que era um fetiche meu ou um bloqueio por ter tido tão poucas quando menino/adolescente. Porém, acredito que isso seja relacionado a um hábito que tenho desde menino, de empilhar coisas, encarrilhar objetos, colecionar itens. Tenho das mais variadas marcas de cuecas, desde as clássicas Calvin Klein às supercaras, como as Versace, que custam a partir de 640 reais cada uma (dessas tenho oito unidades). A marca nacional que é a minha favorita é a Mash. Gosto do designer, da anatomia e da qualidade das peças dessa marca. Da Mash. até as feitas de microfibra eu amo! Além de ter o hábito de comprar cuecas, eu ganho muitas. É comum alguém que não conhece bem os meus gostos me perguntar o que eu gostaria de ganhar, daí falo: cuecas! Qualquer uma, desde que seja das minhas marcas favoritas. Tendo a usar a mesma marca de determinados produtos em razão da confiança que tenho nelas. É comum em autistas essa característica de manter-se fiel a marcas, produtos etc.

Em 2020, assisti a uma live do Grupo Autismo Legal, e o entrevistado, que é autista, disse que só usa um tipo de cueca e que todas que ele tem são iguais, inclusive na cor. Percebi que esse seria um aspecto interessante a ser discutido. No meu caso, gosto de variações de cores. Quando pensei em escrever sobre o assunto, cheguei a conversar com mulheres autistas também, para saber se há algo específico acerca de peças íntimas nas meninas com TEA. E há, sim! Muitas me relataram questões semelhantes ligadas a tecido, corte etc. Houve uma moça que me falou sobre o quanto o bojo do sutiã a “sufocava”! Outra falou a respeito de um “arame” presente em alguns bojos e que a incomodava ao ponto de ela querer ‘arrancar’ o sutiã na rua. Isso porque, disse, ao longo do dia, a sensação de “prisão” se intensificava, deixando-a “desorganizada”.

Além do autismo, tenho TOD (Transtorno Opositivo Desafiador), o que parcialmente explica o meu nível de irritabilidade ser tão alto que tenho que me autocontrolar o tempo todo, isso em associação com a medicação. Muito da minha barreira em me socializar vem desse aspecto. Tenho dificuldade para seguir regras, ser contrariado, receber ordens, nem pensar! Contudo, tenho certo controle sobre o TOD, sei quando os meus “gatilhos” estão sendo acionados, e é exatamente nesse instante que devo “sair de cena”. Isso está correlacionado a diversas questões no meu cotidiano, inclusive às peças intimas que estou usando.

Muitos neurotípicos podem achar superficial esse assunto. Porém, trata-se de algo impactante para uma pessoa neuroatípica. A hipersensibilidade sensorial pode levar um indivíduo a uma desorganização, sobretudo se estimulada de forma errônea, podendo desencadear uma crise. Acho importante que os pais fiquem atentos aos filhos nesse aspecto também. Muitas vezes, um comportamento de inquietude, desconcentração ou agressividade pode estar associado ao tipo de roupa que a criança está usando. Me referi às crianças porque, na maioria das vezes, são os pais que escolhem o que os filhos irão vestir. E a escolha errada de uma simples peça íntima pode causar certo desconforto que, por sua vez, poderá se transformar em algo mais significativo ou desencadear em um “gatilho” que pode seguir o indivíduo pro resto da vida! Ouço relatos de muitos pais que não entendem o porquê de os filhos quererem se despir a todo momento. Não seria o toque das roupas contra a pele da criança o causador de um desconforto sensorial para ela?!

Quando estou me preparando para tomar banho, a coisa com a qual mais me preocupo é que cueca vou escolher. É comum, após me banhar e me secar, eu mudar de ideia e trocar a cueca que havia escolhido. Por um motivo ou outro, durante o banho, posso ter uma súbita mudança de humor. Ah! É comum, também, eu ficar um bom tempo em frente as minhas gavetas de cuecas, olhando, perdendo tempo e contemplando, decidindo qual irei usar. Cada pessoa tem a sua “mania” ou “ritual”. O que pode ser banal para alguns pode ser importante e significativo para outros, e vice-versa. Sou autista, nível 1 de suporte e tenho hipersensibilidade ao toque. A escolha certa de roupas é fundamental para o meu bem estar. E isso não é diferente em relação às roupas íntimas! O importante é cada um encontrar a melhor forma de se relacionar com o próprio corpo, seja pelo ato de se cuidar, seja pelas peças que escolhe para usar.

 

NOTA:

A conceituada marca de cuecas Mash., acaba de firmar uma parceria com o premiado artista Ernane Alves. A ação consiste em conscientizar a sociedade sobre a importância das peças íntimas para pessoas que tem sensibilidade ao toque. A campanha conta com a participação direta do Ernane Alves que, posará com peças da marca a fim de trazer protagonismo ao homem autista que muitas vezes é esquecido pela Causa que prioriza ações direcionadas ao público infantil. “É muito importante desassociar o autismo ao universo infantil. Muita gente se esquece que a criança vai crescer, se tornar adulto e o autismo vai seguir com esse indivíduo pro resto da vida! Boa parte do meu trabalho pela Causa é voltado para os adultos, porque a medida que nós, os autistas, crescemos, vamos nos tornando ‘órfãos’ da Causa!” reflete Ernane.

Ernane Alves para Mash., abril de 2023.