DIVULGADA A PRIMEIRA CRÍTICA SOBRE O LIVRO "O GAROTO SATÉLITE" [CRÍTICA]

Pontos Luminosos sabor Caramelo

Ver um texto escrito em letra cursiva (na capa interna do livro), foi como abrir um caderno de anotações do escritor.  Fiz questão de não folear. Queria ser novamente impactada. A blusa da NASA e os foguetes, tudo cuidadosamente relacionados.

Ernane Alves, cineasta, ator, artista plástico de reconhecida competência.  Agora estamos diante de mais um talento de Ernane: Escritor!

Em seu primeiro livro, Colapso Azul – um olhar particular sobre o Autismo (2021), conhecemos a originalidade na narrativa de sua autobiografia, o que encantou-nos e trouxe saberes sobre um jovem autista de nível de suporte 1 que muito se fala  “autismo mais leve” que de leve não tem nada, devido às barreiras atitudinais que a sociedade impõe aos  diferentes, aos neurodiversos.

Ao abrir o livro Garoto Satélite – Autismo e Sexualidade (2023), logo foi captada pelas fotos de Ernane e de sua mãe, lado a lado. Os dois, muito bonitos e expressivos. Senti que estava ali, sendo apresentada à sua mãe com a qual encontraria em várias passagens do enredo marcante. Ressalto a forma singular que Ernane criou para referir-se aos pais: Minha Mãe, Meu Pai.

Ernane nos capta com delicadeza e vigor nas narrativas de sua vida enquanto criança e adolescente sob o olhar do homem realizado que é hoje.  Uma autobiografia sem reservas, sem pudores, que nos traz verdades que nos surpreendem. Eu, como pessoa neurotípica, psicóloga, desconhecia o turbilhão de sensações e sentimentos que Ernane nos apresenta.

Ele nos encanta com a escrita criativa, que traz fluidez para nossa leitura. Sua experiência como cineasta, acredito, traz para nós leitores, a sensação de estar em cena, compartilhando os espaços tão ricamente descritos sem que seja enfadonho. Somos surpreendentemente arrebatados ao conhecer as situações que marcaram o jovem autista e que foram fundamentais para construção de sua trajetória de vida e de sucesso que alcançou.

As vivências dramáticas na escola nos leva a muita emoção, na verdade a lágrimas e a indignação. Torcemos quando em determinado momento ele consegue dar um basta e mudar a trajetória como Garoto Satélite que é!

A obra mostra o ‘mundo’ de uma pessoa neurodiversa e o bullying que os colegas e professores neurotípicos submeteram um ser humano sensível, um jovem lindo que era “usado” para satisfazer sexualmente as colegas. Acompanhamos seu crescimento e o desabrochar de sua sexualidade.

Ernane, aos 15 anos, encantado com os “pontos de luz” os captura, à noite no campinho ao lado de sua casa, planejando fazer uma luminária. É surpreendido por um policial, que o observava. Essa autoridade o viu “cometer um crime”. Ernane solta os “pontos de luz”. E a partir dessa cena, vemos a beleza do encontro de um adolescente autista, carente da figura paterna, e um homem, vinte anos mais velho. Descobriram juntos e tiveram vivências desejosas de um filho por uma relação entre um amigo/pai. Essa transferência perfeitamente compreensível e justificada, se torna uma grande e forte amizade. Nenhuma culpa até que os dois percebem que a 'amizade' começa a se transformar em desejo de um pelo outro. Ernane com sua sensibilidade tem marcadas as sensações advindas do ritual do amigo amado: mastigar caramelos. Quando a ausência dói, há a admiração mútua pela beleza do ente querido e eles se culpam ao perceber que tudo que vivem se transforma em amor, desejo entre homens. E nisso, vem a culpa, a “necessidade” de abandonar o desejo igual como foi feito com os “pontos de luz” capturados e soltos.. Restam os Caramelos Embaré, sentar-se no campinho, jogá-los para o alto da forma exata aprendida para que eles “flutuem” e possam ser sorvidos com o prazer de uma relação de amor.

Fico aqui me esforçando para não citar trechos cinematográficos em uma obra literária que me trouxe arrepios, indignação, alegrias. Ao “ver” uma cena de horror vivenciada por uma criança autista na escola, dá vontade de procurar a professora e mostrar-lhe o texto que me trouxe às lágrimas. Ela com certeza, desconhecia o impacto que uma atividade escolar pode gerar ao violar a subjetividade do sujeito.

Outras cenas do universo estelar de Ernane precisam ser conhecidas por pais e mães, educadores e toda a comunidade escolar. Com certeza contribuirão muito para desenvolver condutas respeitosas e estimular olhar o Outro sem conceitos formados - preconceitos - e estar disposto ao aprendizado permanente. Afinal somos todos diferentes!

Denise Martins Ferreira

Psicóloga,  membro da Associação Mineira de Amigos e de Pessoas com Epilepsia - Amae e da Comissão de Defesa de Direitos da Pessoa com Deficiência e as com Doenças Raras da OAB/MG