SATÉLITES - Resenha de Maria Helena Roscoe [RESENHA]
SATÉLITES
Li o segundo livro de Ernane Alves em uma viagem de férias com Cristiano e Gustavo, meus filhos gêmeos, com
autismo não verbal, hoje com 27 anos. Durante anos achava que não conseguiria
fazer isso: Ter prazer em uma viagem de férias com meus dois filhos! Viajava
com um ou com o outro ou tinha sempre mais alguém junto, e as férias eram em
algum grau estressantes. O dia a dia então...
Essas
foram maravilhosas tanto para mim quanto para eles!
Assim,
“O Garoto Satélite” fez parte de momentos muito privilegiados da minha vida, em
que tive prazer dando prazer a quem eu amo
Terminando
a leitura, fiquei com uma questão: Por que alguém que não se interessa pela
vida de ninguém se dispõe a falar da sua de forma tão explícita?
Seres
Vivos são aqueles que nascem, crescem, tem potencial para se reproduzir e
morrem. Então porque “anjos azuis” seriam assexuados? Ernane nos lembra que não.
Escolhe contribuir para que mais informação diminua estigmas e preconceitos.
Acredita que ter sucesso é ser útil para alguém.
A
palavra autismo teria sido cunhada retirando-se Eros de autoerotismo. Mas, que
outra força, além do Amor, faria com que os caramelos jogados por Antônio não caíssem
com a força gravitacional, mas flutuassem no ar? A força dessa metáfora é
escandalosa e chama minha atenção.
No
livro há relatos sobre desejo, masturbação, permitir-se ser usado e seduzido,
ereção, ejaculação, bullying. Ernane fala do despertar da sua sexualidade na
adolescência. Em um processo similar ao da associação livre, em que pedimos ao
analisando que fale tudo que lhe venha à cabeça, ele escreve lembranças.
Relata
que durante boa parte de sua vida foi um satélite que captava tudo à volta sem transmitir
aos demais, isolado até de si mesmo.
No
início do livro, aparecem duas fotos lado a lado: A do autor vestindo uma
camisa com a logo da banda Oasis e a de sua mãe com um crucifixo. Todos
queremos um oásis interno ao qual possamos nos religar. A crença em um ser
onipotente, onisciente e onipresente que nos ama e cuida de cada um de nós,
aparece de diferentes formas nas várias culturas e sustenta muitas vidas. Somos
condicionados pela biologia e por crenças, cultura, hábitos muitas vezes sem
nos dar conta. Cristianismo e rock estão entre as inúmeras forças
gravitacionais que determinam nossos rumos. Reconhecer que somos satélites de
redes gravitacionais que podem nos assujeitar, saber de onde falamos quando
pronunciamos a palavra EU, nos possibilita alguma liberdade.
Tabus
sobre a sexualidade reforçam a crença de que não somos animais, negam a
evolução. Hipocrisia, egoísmo e falsos moralismos tornam o teatro social vazio.
No lugar de palco de trocas, dissenso, articulação de pontos de vista diferentes,
novas e renovadas experiências e pactuações, vemos uma verdadeira torre de
Babel que parece querer nossa extinção. Falar só com quem é da mesma tribo, usando
a linguagem apenas para reforçar os próprios pontos de vista e lustrar a
vaidade, defendendo o cancelamento de quem pensa diferente, é de uma violência
e empobrecimento absurdos. Permitir que o dinheiro e o mercado comandem nossas
vidas, idem. Respeitar os conhecimentos e combinados que trouxeram nossa
sociedade ao que é hoje é diferente de acreditar que a verdade final está
escrita e que só nos resta obedecer.
Ao
falar sobre minha vivência com meus filhos, citei por mais de uma vez uma aula
de genética quando diante de uma prancha com bolinhas de várias cores, eu e um
colega daltônico víamos algarismos totalmente diferentes. Embora nenhum dos
dois pudesse ver o que o outro via, certamente reconhecíamos como legítimas ambas
as experiências.
Respeito
é bom e todo mundo gosta!
Respeitar
a diversidade da vida, a diversidade do humano, passa por reconhecer nossos limites
e as redes gravitacionais que nos constituem. Passa por suportar o desconhecido,
abrindo portas para construção de novos conhecimentos.
Relatos
e atitudes do Ernane me causam estranhamento. Por exemplo: Postar fotografias
de cueca em suas redes sociais. O desconforto de ter sido vítima de um
exibicionista na infância se presentifica de imediato. Mas essa experiência é
minha, não me dá o direito de julgá-lo. Ir além da reação imediata de colocar
ele e o exibicionista pedófilo no mesmo patamar é possível, mas exige trabalho.
Trabalho de diálogo comigo mesma, com as redes que me sustentam e atravessam e
com o que há de novo em cada experiência. Ernane e eu não somos da mesma tribo,
mas estamos unidos pela Causa do autismo. Por diferentes caminhos, optamos por servir
voluntariamente a uma força que atravessa gerações. Reafirmamos nossa cidadania
que se constitui em um coletivo que tem o respeito à dignidade humana como princípio
fundamental. Escolhemos ser protagonistas de uma sociedade realmente democrática
e participativa em que a convivência com as diferenças, inclusive como os
extremos da diversidade seja um valor.
Amar
o próximo como a si mesmo, não pode se restringir ao si mesmo e seus espelhos. Isso
não é amor, é um egoísmo de curtíssimo prazo. Somos gregários, sociais e
interdependentes. Sentir, observar, dialogar é uma forma de promover nossa
saúde individual e a da nossa sociedade.
Ernane
escolhe a liberdade, apavorante, de mostrar quem é para o mundo.
Maria Helena Roscoe
Psiquiatra e Coautora da Linha de Cuidados para atenção às pessoas com TEA e suas Famílias no SUS