Entre o Colapso e o Satélite: a literatura de Ernane Alves em movimento... [RESENHA]

 

Ao lançar Colapso Azul (2021), Ernane Alves não apenas se apresentou ao universo literário, mas inaugurou uma voz rara: confessional, visceral e politizada. O livro de estreia é, como o próprio autor define, “um olhar particular sobre o autismo”. Nele, Ernane reconstrói memórias de infância e juventude, expõe cicatrizes, enfrenta fantasmas e se revela sem filtros. A escrita, marcada pela repetição, pela intensidade imagética e pela crueza dos detalhes, traduz na forma literária o funcionamento singular de uma mente neurodivergente. O resultado é uma narrativa que escapa da normatividade, onde ele inaugurou uma voz confessional e visceral na literatura brasileira, ao transformar sua experiência no espectro autista em matéria literária de grande força estética

Do íntimo de Colapso Azul brota a continuidade em O GarotoSatélite (2023), onde o autor ousa avançar sobre um terreno ainda mais espinhoso: a sexualidade atípica, rompendo ainda mais tabus, dando corpo e desejo a um tema quase ausente no campo literário. Se o primeiro livro pode ser lido como uma apresentação de mundo, o segundo é um mergulho nos corpos e desejos, na tensão entre pureza e proibido, libertação e compulsão. Ernane coloca em xeque a infantilização recorrente do autismo, desmontando preconceitos ao expor a experiência sexual de maneira direta, sem pudor ou amenizações. O impacto é duplo: ao mesmo tempo em que provoca incômodo nos leitores mais conservadores, essa obra oferece espelho e acolhimento àqueles que compartilham desse silêncio socialmente imposto.

Essas duas obras se complementam como etapas de uma trilogia que se encerrará com criativaMENTE, no qual o “eu” íntimo se converte em “nós” coletivo: o autista e seu lugar no mercado de trabalho. O ciclo é, portanto, dialético: do “eu” ferido ao “eu” desejante, e do “eu” ao “nós” — um percurso de individuação que se converte em intervenção social.

Ernane Alves prova, com esses dois primeiros volumes, que a literatura pode ser simultaneamente testemunho e arte, denúncia e beleza. Sua obra carrega um traço de urgência — como se cada página fosse escrita não apenas para registrar, mas para intervir, para existir contra o apagamento. O que se anuncia é uma trilogia que ficará marcada não só pela originalidade estética, mas pelo gesto corajoso de inscrever o autismo, em suas múltiplas dimensões, no coração da literatura brasileira contemporânea. Com sua escrita desnuda de preconceitos e limitações, Ernane Alves, se consolida, assim, não apenas como um autor de best-seller, mas como uma das vozes mais autênticas e necessárias de sua geração.

Bernardo Dias

Relações Públicas com especialização em Comunicação Internacional.